Comecei a escrever-te há muito tempo atrás, mesmo antes de te conhecer. Era eu uma rapariga perdida pelo mundo e já escrevia para ti, mesmo sem te conhecer. Foi por isso que naquela tarde de primavera em que entraste pelo café meio escondido debaixo de uma das mais recatadas ruas de Paris, eu soube que eras tu. Soube que eras tu para quem eu sempre tinha escrito. Penso que não me viste sentada numa mesa ao fundo desse café, mas é normal. Nunca ninguém me vê. Estou já habituada a ser eu quem vê sempre as pessoas e acredito que seja por isso que nunca me canso de escrever. Acredito que seja por isso que tenho sempre histórias nas pontas dos dedos. Não gosto, nem desgosto. Sou ainda demasiado pequena para gostar de mim. Tenho vinte e sete anos e vivo em paris há cinco. Nunca esperei nada de ninguém e tive sempre esta nuvem meio cinzenta de cima de mim. Talvez seja por isso, que naquele dia não me tenhas visto. Entraste no café e pediste um café. Tinhas um francês muito atrapalhado e despachado. Chegavas a comer letras. Chegavas a comer vírgulas e pontos finais. Fiquei sentada a olhar-te enquanto tu olhavas a televisão. Decidi sair. Paguei a minha conta e falei num francês perfeito. Num francês que sempre tinha ambicionado falar desde aqueles verões em que ouvia todos os meus primos a falarem essa língua tão misteriosa. Esses eram os dias na aldeia. Os meus primos todos e um cheiro a sol vindo de outro mundo neles. Os meus primos com roupas novas e namoradas novas e o francês. Os meus primos e a França. Os meus primos e Paris. Sei que trabalhei muito para estar no sítio que estou e, quando a saudade não é muita e o sol é quente e me consegue aquecer, quase que tenho orgulho em mim. Falamos sempre demasiado até dizermos o essencial. Falo sempre demasiado quando encontro alguém que até me acha uma certa piada. Falo demais, porque tenho sempre medo que seja a última vez que alguém me queira ouvir. Por isso, decidi sair do café. Não sei se olhaste para mim, pois nunca olho para trás quando saio de algum local. A primavera em Paris é sempre demasiado fria comparada com a do sítio de onde vim. Pelo menos é isso que eu sinto. Mas talvez seja só a saudade e o medo. A saudade e o medo tornam sempre tudo mais frio, sabias? Comecei a escrever-te há muito tempo, mesmo ainda antes do nosso encontro naquele café de Paris. Depois desse encontro, ainda nos encontrámos mais umas duas ou três vezes sempre nesse mesmo café. Só um ano mais tarde nos iríamos sentar no pátio da tua casa a falar sobre Tolstoy e os Nove Círculos do Inferno de Dante. Lembro-me dessas tardes como me lembro do sorriso da minha avô quando via os meus primos a chegarem ao longe nos carros novos. Tão bonitos, dizia ela. Lembro-me da minha avô como a minha única confidente e numa dessas nossas tardes lembro-me de te ter contado isso. Falávamos de Literatura e História. Por vezes levavas o teu gira-discos e ouvíamos músicas que falavam de amores perdidos e de amores encontrados e de saudade de tudo o que se perde na vida. Nunca fizemos planos para o futuro, meu querido. Escrevo-te hoje para te dizer que te escrevia há já muito tempo. Mesmo antes de te conhecer. As palavras vão-me faltando à medida que olho para a tua fotografia. Escrevo sempre com a tua fotografia ao lado. Mon amour, ne t’inquiète pás. Disseste tu uma vez, nesse teu francês atabalhoado. Sorri e disse que isso era impossível. Numa dessas tão longas e solarengas tardes, cheguei mesmo a acreditar que Paris podia ter, afinal, uma primavera bem quente. Numa dessas tardes, pintámos o teu pátio com tons do amor. Escrevemos poesia francesa nas paredes a tom de preto, para que nunca nos esquecêssemos que a poesia para ser bonita tem que ser escrita por alguém que já sofreu muito. Escrevíamos cartas o verão a fio, enquanto tu ias visitar a tua mãe à fria Polónia. Da Polónia não recordo as suas características imagens, mas sim as memórias da tua infância. Memórias que me contavas quando me levavas a pé até casa. Sempre falei muito contigo, meu querido. Tu parle autant parce que tu a peur que ce soit la derniére fois que quelqu'un t'écoute, n'est-ce pas?, perguntaste enquanto falávamos à beira do Rio Sena. Parei de falar e tu deste-me as mãos. Não me prometeste nada, como acontece nos filmes. Não disseste que me ias querer ouvir sempre. Não disseste para não me preocupar. Só me deste as mãos e sobre o céu de Paris, nós éramos tão felizes. Escrevo-te agora neste português, que sei que nunca perceberás porque os teus olhos ainda me conseguem aquecer o coração quando o inverno chega a Paris. Agora que estás nessa Polónia fria que tanto te fez chorar quando eras pequeno, pergunto-me se lês um dos livros que te ofereci e se pensas nas tardes em que eu andava na tua bicicleta e cantávamos juntos no segundo piso da Torre Eiffel. Agora que estás nessa Polónia fria, onde só te resta a tua mãe que nunca aprendeu a ler, pergunto-me se olhas para a minha fotografia e se no meu sorriso consegues encontrar as nossas tardes no teu pátio. Sei que um dia voltarás a Paris, meu querido. E aí, a cidade voltará a ser preenchida por primaveras quentes e por sorrisos à beira do Sena.
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oh anna, está lindo. tão lindo. adoro a maneira como escreves, já te disse isso? se não, disse agora, e se disse nunca me cansarei de repeti-lo.
ResponderEliminarestá perfeito. tenho dito.
ResponderEliminarMuito bonito, meu amor.
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